O Brasil foi um dos pioneiros no tratamento da infecção pelo HIV, e era um exemplo mundial no final do século XX. A maior parte dos medicamentos estava disponível e o Brasil foi o primeiro país a oferecer acesso universal ao tratamento.1 Atualmente, o Protocolo Clínico e as Diretrizes do Tratamento (PCDT) da infecção pelo HIV ainda tentam seguir as evidências científicas mais atuais.2 A indicação para considerar o tratamento de qualquer pessoa HIV positiva independentemente da contagem de CD4 ilustra essa tentativa. Contudo, após quase duas décadas, o Brasil não é mais considerado um exemplo, principalmente no que se refere ao acesso a medicamentos considerados mais efetivos para o tratamento da infecção pelo HIV.
É claro que algumas explicações são bastante perceptíveis. O custo do tratamento é comumente levantado como uma grande barreira, e quase intransponível, principalmente na aquisição dos medicamentos considerados mais modernos e, teoricamente, mais efetivos. Da mesma maneira, o atual PCDT pode ser apenas um espelho dos graves problemas em curso no Brasil. A grave recessão e a crise econômica do país podem limitar os gastos com a saúde. Por fim, o atual cenário político, com muitas incertezas, interfere diretamente sobre as possíveis decisões que devem ser tomadas a esse respeito.
No final de 2015, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou uma atualização nas recomendações para o tratamento da infecção pelo HIV.3 É extremamente importante considerar que essas recomendações têm como principais alvos os países de baixa renda per capita e, com menor extensão, aqueles de média renda. Nessa atualização existem importantes modificações quanto aos medicamentos a serem escolhidos para o tratamento e que, de certa maneira, incorporaram as últimas evidências científicas dos ensaios clínicos randomizados e estudos de coorte. O intuito deste artigo é comparar as recomendações da OMS com o atual PCDT do nosso país.
Quando iniciar a terapia antirretroviral?
Tanto as recomendações da OMS quanto o PCDT vão na mesma direção: a universalização do tratamento da infecção pelo HIV independentemente da contagem de células CD4. Essa abordagem beneficiaria o indivíduo e a comunidade. No nível comunitário, reduziria a quantidade de vírus circulando, o que diminuiria a transmissão do HIV e o tratamento passaria, então, a ser preventivo. No nível individual, impediria qualquer grau de supressão imunológica e, potencialmente, os efeitos deletérios associados com inflamação crônica (como aumento na incidência de doenças cardiovasculares).
A publicação da OMS manteve o esquema preferencial de primeira linha com tenofovir (TDF) + lamivudina (3TC) ou emtricitabina (FTC) + efavirenz (EFV) na sua dose padrão
Quais medicações devem ser priorizadas?
A prioridade deve ser dada aos medicamentos com melhor eficácia e tolerabilidade.3 Isso deve respeitar a conveniência e a disponibilidade das combinações fixas de dose (CFD), a compatibilidade do tratamento com outras comorbidades comuns e seu uso potencial nas diferentes populações que necessitam do tratamento.
Quais são os esquemas de primeira linha?
Esquema preferencial
Nesse aspecto, a publicação da OMS manteve o esquema preferencial de primeira linha com tenofovir (TDF) + lamivudina (3TC) ou emtricitabina (FTC) + efavirenz (EFV) na sua dose padrão (tabela 1). De acordo com a publicação, essa abordagem apresenta benefício clínico, operacional e programático quando comparada com as outras opções baseadas em inibidores da transcriptase reversa não análogos aos nucleosídios (ITRNN) e inibidores da protease (IP).
Esquema alternativo
Os possíveis esquemas alternativos foram modificados com a incorporação dos achados dos últimos estudos clínicos. Dolutegravir (DTG) e EFV em dose menor (400 mg/dia) foram incluídos como esquemas alternativos.
O DTG tem se mostrado superior a qualquer outro comparador, seja ITRNN, IP ou inibidor da integrase (INI).4-6 Esse medicamento ainda apresenta algumas limitações, mas é de fácil posologia, com poucas interações medicamentosas, eficácia virológica superior e uma elevada barreira genética para mutações.
A outra novidade é um EFV “repaginado”. Existe uma grande corrente que elenca diversos problemas com o uso do EFV na sua dose usual como agente preferencial do tratamento da infecção pelo HIV, principalmente em decorrência de seus possíveis eventos adversos. Como alternativa, o EFV com dose diminuída de 400 mg/dia tem eficácia comparável ao EFV em sua dose usual.7 Nessa posologia, apresenta menor toxicidade e potencial de reduzir o custo e o tamanho do comprimido.3 O ideal seria a monitoração do nível sérico do medicamento, já que o sucesso terapêutico e a frequência de efeitos adversos estão diretamente associados com sua concentração plasmática.8 Entretanto, essa prática não é aplicável no nível de saúde pública.
Está claramente expresso nessa atualização que essas recomendações ainda não são preferenciais em função do seu limitado uso no contexto dos ensaios clínicos randomizados e da falta de informações sobre segurança e eficácia em situações específicas, tais como gestação e coinfecção com tuberculose.
Medicamentos mais tradicionais, a
zidovudina (ZDV ou AZT) e a nevirapina (NVP) ainda foram mantidas como alternativa, principalmente em locais com limitadas opções.
Comentários
O atual PCDT também deve ser atualizado com base na incorporação dos estudos clínicos mais atuais e, pelo menos, no nível da OMS. Os INI, como classe, são, no mínimo, iguais aos esquemas preferenciais recomendados. Consistentemente, mostram-se igualmente efetivos e mais bem tolerados do que os outros antirretrovirais.3 De modo geral, são mais fáceis de utilizar e apresentam menos interações, que resultam em menores interrupções no tratamento. O DTG, em particular, tem mostrado superioridade em relação a qualquer outro comparador que foi estudado e talvez deva ser o INI preferido.4-6
Por outro lado, o EFV pode ter ainda importante espaço. Tem sido demonstrado que, na maioria dos pacientes, os efeitos adversos são proporcionais aos níveis séricos das drogas utilizadas e apresentam relação com o peso dos indivíduos.7,8 Desse modo, principalmente em pessoas com peso inferior a 70 kg, a dose reduzida pode ser uma medida adequada para minimizar tal reação. Isso levaria, com certeza, a uma menor interrupção por toxicidade no tratamento de esquemas que utilizam EFV na sua dose padrão.
O atual PCDT também deve ser atualizado com base na incorporação dos estudos clínicos mais atuais e no nível da OMS
Quais são os esquemas de segunda linha?
As recomendações da OMS colocam importante peso na simplicidade dos esquemas de segunda linha (tabela 2). A preferência deve ser dada para um IP reforçado que seja resistente (estável) ao calor em associação com dois inibidores da transcriptase reversa análogos aos nucleosídios (ITRAN). Segundo a OMS, os IPs considerados preferenciais são lopinavir (LPV) ou atazanavir (ATV), reforçados com pequenas doses de ritonavir (/r).
A grande novidade foi a integração do darunavir (DRV/r) como IP alternativo. A justificativa é que, de acordo com os estudos, há equivalência entre DRV/r, ATV/r e LPV/r nos esquemas de segunda linha em indivíduos que falham em esquema de primeira linha (com ITRNA).3 Ainda como alternativa ao esquema de segunda linha, houve a incorporação de uma abordagem que poupa o uso de ITRAN, como o uso combinado de raltegravir (RAL) + LPV/r. Contudo, nesta atualização, de acordo com a OMS, o uso de RAL ou DRV/r no curto prazo aumentará os custos do tratamento de segunda linha. Além disso, esses medicamentos ainda não demonstraram superioridade quando comparados com os esquemas padrão de segunda linha, recomendados pela OMS. O texto ressalta que há expectativa, num futuro próximo, de que os custos dessas substâncias sejam reduzidos. Caso isso ocorra, a queda no custo deve ser levada em consideração quando as decisões forem tomadas.
Comentários
Existe um grande espaço para mudanças nos esquemas de segunda linha propostos atualmente pelo PCDT. Ainda é recomendado o uso do LPV/r como IP preferencial. O LPV/r apresenta um importante histórico e revolucionou a forma de utilizar os IPs. No entanto, seu uso tem sido sistematicamente associado com efeitos adversos indesejáveis, tais como síndrome metabólica e aumento no risco de doença cardiovascular.9 Além disso, é o IP com maior número de comprimidos a serem administrados, o que dificulta a adesão ao tratamento. Por essas razões, não está mais sendo recomendado como agente preferencial, principalmente nos países desenvolvidos. Esquemas com ATV/r são, no mínimo, equivalentes, entretanto, têm administração mais fácil e não estão associados com alterações metabólicas.10 Por outro lado, estudos clínicos demonstram ao menos equivalência do DRV/r quando comparado ao ATV/r ou LPV/r; contudo, o DRV/r não tem sido associado com os eventos adversos metabólicos e cardiovasculares do LPV/r11 ou com toxicidade renal (associada com o uso do LPV/r ou ATV/r).12
Da mesma maneira, a incorporação de esquemas que poupam a utilização de ITRANs é um desafio e uma evolução. É uma completa mudança nos paradigmas da terapia antirretroviral (TARV), pois os ITRANs já foram considerados a espinha dorsal do tratamento. Esquemas sem ITRANs (exceto 3TC) terão menor toxicidade celular (mitocondrial) e possivelmente serão melhor tolerados. Nesse sentido, a combinação de um IP/r com algum INI é extremamente atraente como esquema de segunda linha.13 Novamente, o atual PCDT poderia ser atualizado e levar em consideração evidências científicas mais atuais.
A incorporação de esquemas que poupam a utilização de ITRANs é um desafio e uma evolução
Conclusões
O tratamento do HIV ainda é um grande desafio e carece de constante atualização. Ainda há uma busca por medicamentos mais seguros, de mais fácil utilização, que não apresentem interações medicamentosas importantes e que possam ser utilizados de modo indiscriminado. Esse “cálice sagrado” ainda não foi encontrado. Entretanto, com os medicamentos atualmente disponíveis é (ou seria) possível delinear combinações atraentes de excelente potencial terapêutico, com baixa toxicidade e de fácil uso (tabela 3).14,15
A procura não deve parar. O PCDT brasileiro deve avançar e incorporar as novas evidências científicas. Talvez tenha chegado um momento único no qual a indústria farmacêutica seja chamada para, num esforço conjunto, facilitar o acesso aos novos medicamentos (com importante redução no custo!) para que possam ser incorporados e utilizados de maneira geral no país.